3 - O ANTIGO CHALÉ DAS MÓS OU CASA DO CAMPINHOS

José Gomes Quadrado

Subsiste na toponímia urbana da povoação a Rua do Chalé, por ali, na área da Portelinha, ter sido erguido o único edifício brasonado da freguesia. Constituído por dois pisos, apresenta os vãos em arco abatido com molduras de cantaria simples e os pilares incorporados na parede (como o que se vê figura) tal como a cornija, são igualmente de cantaria. Teria sido mandado construir, no último quartel do século XVIII, por um grande proprietário não residente nas Mós e, por isto mesmo, passou a ser nomeado “chalé”, termo derivado do francês “chalet” que, a partir de finais daquele século, designava edifício chique, destinado à residência temporária ou de veraneio de gente rica. Este velho Chalé terá servido para alojar várias gerações de abastados proprietários e respectivas comitivas, que viriam algumas vezes às Mós por motivos relacionados com a administração das muitas propriedades rústicas que possuíam, não só no termo desta mas também nos de freguesias vizinhas; noutras ocasiões, certamente, viriam instalar-se aqui com as respectivas famílias e, quiçá, com alguns convidados, para usufruírem da beleza e da quietude da Natureza, bem como da paz que sempre reinou nesta povoação.
Fosse qual fosse a sua utilização em tempos idos, a maior dúvida que sobre ele mantenho, desde os meus tempos de adolescente, resume-se na seguinte questão: quem terá sido o opulento proprietário que mandou construir esta moradia apalaçada, maior e tão diferente das outras casas das Mós?
O eminente historiador regional (e não só), Dr. João Albino Pinto Ferreira, limita-se a chamar-lhe “Casa do Campos ou Campinhos”. Depois, uma fonte enganosa e não identificada, levou o meu saudoso Amigo Dr. Castelinho a inferir que a “Casa do Campos ”também era conhecida por “Casa Asseca” “por ter sido o Visconde de Asseca o seu primitivo proprietário...”. O devotado empenho em exaltar os valores da sua amada terra, sempre presente na Monografia que nos legou, impediu-o de analisar com espírito crítico se esta era, de facto, uma fonte fidedigna E a sua bem intencionada convicção levou-o a acrescentar: “Este antigo solar de fidalgos pertenceu ao Visconde de Asseca descendente de Salvador Correia de Sá e Benevides...”(1)
Comecemos por ter presente que se um qualquer dos Assecas alguma vez tivesse “assentado arraiais” na povoação das Mós, um tão inusitado acontecimento não teria passado despercebido ao bem informado cónego D. Joaquim de Azevedo que, indubitavelmente, não deixaria de o registar na sua “História Ecclesiastica da Cidade e Bispado de Lamego”, no capítulo: ”Pessoas illustres por nascimento”...
O certo é que, a partir de 1982, a 3ª edição daquela Monografia passou a ser a fonte onde, directa ou indirectamente, têm vindo a beber quase todos os que pretendem identificar este apalaçado edifício. Com efeito, depois de autores de livros com maior ou menor pendor roteirista, vieram também na sua peugada “cibernautas” reproduzir aquele engano. Assim, consultando a Internet, pude ver num “sítio” uma cópia da fotografia do brasão que sempre adornou o referido edifício, logo seguida deste comentário: “Este antigo solar, também conhecido por Casa do Campos, deverá ter pertencido ao Visconde de Asseca”. E noutro “sítio“, o antigo Chalé aparece identificado como: “uma casa apalaçada, com brasão, conhecido (sic) por Solar dos Assecas”.
Como não cultivo a arte de fabular, sirvo-me de insofismáveis argumentos para continuar a demonstrar que estamos, efectivamente, perante equívoco. Começo por comparar este que prevalece, intacto, na fachada do antigo Chalé das Mós com o brasão que podemos observar no frontispício da “Casa Grande” de Freixo de Numão, fazendo acompanhar a comparação com os comentários de quem tem competência para fazer “falar” as pedras de armas: o já referido historiador Dr. J. A. Pinto Ferreira. E só depois apresento o brasão de armas dos viscondes da Asseca, cuja leitura servirá como prova conclusiva daquele mal-entendido.
Este ilustre freixiense, numa das páginas do livro abaixo referido, apresenta a estampa do brasão de armas do Chalé e na sequente “lição heráldica”, começa por fazer referência ao granito de que é feita a coroa e o calcário que serviu para esculpir a pedra de armas; em seguida, diz que o brasão remonta à “época do Séc. XVIII”, ou seja, ao mesmo século da construção do edifício. Depois, na estudada “leitura” são relacionados os respectivos 4 “quartéis” (ou divisões) com outros tantos apelidos: ”I – Sousas de Arronches (incompleto); II – Vasconcelos; III – Moutinho; IV – Seixas.” Por fim, vem referido o “timbre” (as peças que figuram junto à coroa) :”Torre ou Castelo dos Sousas, e o Leão correspondente aos Vasconcelos.” (2)

Observemos, agora, o brasão de armas do solar barroco de Freixo de Numão e a leitura que dele faz Pinto Ferreira:
“Localização: Casa Grande – Freixo de Numão.
Época: Séc. XVIII.
Lição heráldica.
Classificação: Família.
Composição: Esquartelada.
Leitura: Sousa (de Arronches), Vasconcelos, Moutinho, Amaral”.
Nota: Contra o costume nacional apresenta dois timbres (do 1º e 2º quartel), assentes no bordo superior do escudo. Armas rematadas por uma coroa de nobreza”. (3)

Para além de outras semelhanças, constatamos que três dos apelidos são comuns aos dois brasões. Outra curiosa coincidência, reside no facto do desembargador José Ignácio Pais Pinto de Sousa e Vasconcelos (1767 – 1831) ter sido, simultaneamente, dono e “senhor da Casa Grande” de Freixo de Numão e um grande (porventura o maior) proprietário nas Mós.(4) Em contrapartida, não só nunca se ouviu falar de uma única propriedade rústica que tivesse sido pertença dos viscondes de Asseca, como também não se vislumbra a mínima similitude do seu com o brasão do Chalé das Mós, como veremos a seguir.
O primeiro visconde de Asseca, Martim Corrêa de Sá, viveu entre 1639 e 1678 e era, efectivamente, filho do celebrado herói Salvador Correia de Sá e Benevides, o restaurador de Angola, e de D. Catarina Velasco (filha dum vice-rei do Peru). Entre 1779 e 1817, período no princípio do qual terão sido construídos os dois solares, era 5º visconde de Asseca, Salvador Correia de Sá e Benevides Velasco.
A ascendência deste e dos restantes titulares dos Assecas fica perfeitamente demonstrada com a competente leitura do respectivo brasão, Com efeito, através dela, ficamos a saber que os seus 4 “quartéis de armas” estão relacionados com os apelidos daqueles seus antepassados seiscentistas: no primeiro quartel, estão as armas dos Correias; no segundo, as dos Sás; no enxadrezado inferior, as armas dos Velascos e no quartel que apresenta o “campo de prata” com um leão, figuram as armas dos Benevides.”(5).
Com esta comparação fica confirmado que, ao contrário daquela, nenhuma similitude existe entre este e o brasão existente no frontispício do Chalé das Mós.
Antes desta “acareação” já sabia que o 5º visconde de Asseca, tal como os titulares seus parentes, todos herdaram uma riqueza fabulosa no Brasil; sabia que eram riquíssimos, apesar de Salvador Correia de Sá e sua mulher terem perdido os avultados bens que possuíam no Peru e em Castela, quando este herói participou na Restauração da independência nacional. Aquele, além de 5º visconde era, ainda, par do reino por direito hereditário, e como tal, viveu sempre próximo da Corte: primeiro, em Lisboa, onde, também, administrava as muitas propriedades que tinha neste e no distrito de Santarém; depois, no Brasil, administrando a grande riqueza que lá tinha herdado E sabendo tudo isto, cedo me convenci que jamais qualquer um dos sucessivos viscondes de Asseca terá ouvido falar da nossa recôndita aldeia...
Desfeito o equívoco, fica ainda por saber quem mandou construir o brasonado edifício das Mós. Penso que o falecido Dr. J. A. Pinto Ferreira, com quem algumas vezes conversei sabre assuntos ligados à Toponímia, jamais explicitou o nome de quem mandou construir a “Casa Grande” da sua terra natal. E sendo assim, quem sou eu para vir aqui identificar o primeiro proprietário do antigo Chalé das Mós?
Não me atrevo a nomeá-lo, embora esteja convencido de possuir alguns indícios...
Mas vamos a factos.
Na segunda metade do século XIX, a gente povoação chamava-lhe Casa do Campinhos... Porquê?
Pinto Ferreira e outros autores deixaram-nos a opinião segundo a qual ela terá sido pertença do riquíssimo 1º Barão de Vila Nova de Foz Côa, Francisco António de Campos. Mas se assim fosse, tratando-se duma personalidade credenciada com títulos nobiliárquicos (não só de barão mas também de visconde (6) ),, o mais lógico seria que o edifício passasse a chamar-se, Chalé ou Solar do Visconde de Foz Côa...
Mas não!
Sei de fonte segura, que há 120 anos, o edifício continuava a ser conhecido por Casa do Campinhos. Esta fonte chamava-se Maria Joaquina Ferreira, a minha queridíssima avó paterna, nascida em 1877, que entre muitas outras narrações, me deu notícia dum acontecimento passado na sua meninice, que eu resumiria assim: num dos salões do grande edifício teve lugar um baile que terminou com a derrocada do sobrado; daí a pouco, toda a povoação entrou em alvoroço porque uma rapariga (com algum atraso mental) “correu” as ruas da aldeia, clamando: - “Ai que desgraça tão grande!!! Lá caíram na casa do Campinhos!!!”
A atribuição popular do diminutivo “Campinhos” mais do que referente a uma só pessoa, procuraria personificar um “clã”, abrangendo vários agregados familiares de uma conhecida linhagem da muito ramificada família dos Campos ou Campos Henriques. Apesar de constituído por membros dispersos por localidades tão diferentes como, Foz Côa, Lisboa, Porto, etc., todos observavam entre si a mais estreita solidariedade: E como qualquer verdadeiro clã, tinha um chefe hereditário e este só podia ser o já referido Barão e Visconde. E por isso, todos os restantes elementos seguiam as suas directivas.
Esta obediência e a referida firme mutualidade de interesses e deveres, teve custos muito pesados para a generalidade das famílias deste “clã”, particularmente, para aquelas que continuaram a residir em Foz Côa até finais de Dezembro de 1846. Isto porque todos os seus elementos (activistas ou não) estiveram expostos às investidas das “milícias cartistas”, porque, além de irmãos e familiares, defendiam as ideias “setembristas” do Barão e Visconde de Vila Nova de Foz Côa.
A mais terrifica das revindictas chegou depois dos irmãos Marçais e seus sequazes terem atribuído àqueles e a outras personagens a ideia de mandar incendiar, por vingança, a casa de habitação com todo o seu espólio, bem como, colheitas, gado, etc., causando grandes prejuízos ao clã dos Marçais. E a 24 de Dezembro de 1846, o designado “Batalhão de Foz Côa”, convertido em “Quadrilha dos Marçais”, chegou à Vila para levar a cabo uma violenta acção punitiva “contra pessoas e bens da gente mais grada da vila e do seu termo, provocando um êxodo de noventa e nove famílias”,(7) entre as quais as dos três irmãos do Visconde, Joaquim, José e Manuel de Campos Henriques e outra gente mais ou menos rica, como a: dos Correias Cavalheiros, dos Seixas, dos Almeidas, dos Margaridos, dos Navarros, etc. Todas elas viram as suas valiosas propriedades urbanas e rústicas assaltadas e/ou incendiadas. Ainda assim, mais sofreram as que tiveram familiares vítimas de espancamentos e até de assassínios. Tudo se passou, intermitentemente, ao longo de algumas décadas, “num tempo em que Foz Côa se transformou numa terra de perseguidores e de perseguidos”, como escreveu o Dr. Sousa Costa.
A ferocidade que então se desenvolveu nesta Vila, viria a afectar, também, várias freguesias doutros concelhos, algumas com grande crueldade, como aconteceu com Santa Comba, então integrada no concelho de Marialva e com menor gravidade, algumas freguesias ao então concelho de Freixo de Numão, que incluía a das Mós que, felizmente, acabou por ser poupada a esta terrífica convulsão política e social.
A história local regista a morte de um único mosense, o moleiro e barqueiro José Polido, que actuava numa azenha da margem esquerda do rio Douro e na barca que transportava quem transitava do e para o termo da Lousa. Apontado como conivente na emboscada montada no sítio do Zambujal (Lousa) que levou ao assassínio do chefe da “quadrilha”, António Marçal, (quando se dirigia para a sua quinta do Farfão), José Polido foi depois fuzilado, no seu posto de trabalho, por facínoras pertencentes à “Quadrilha dos Marçais”.
Os inapaziguáveis excessos cometidos contra algumas das mais importantes propriedades, fez com que a maioria dos mais abastados proprietários fozcoenses viessem a fixar residência em terras tão diversas, como: Moncorvo, Freixo de Numão, S. João da Pesqueira, Pinhel e, sobretudo, no Porto.
Nestes tão conturbados tempos, o facto das Mós aparecer como um local aprazível graças à preciosa paz que então aqui reinava (e não só), fez com que alguns elementos de referidas famílias aqui viessem investir, comprando residência fixa e propriedades rústicas, como aconteceu com elementos da família Correias Cavalheiros, outros uma residência temporária, e entre estes avulta o exemplo do “clã” Campos ou Campos Henriques que resolveu comprar o Chalé das Mós, para lhes servir moradia de veraneio e/ou, talvez, de residência estratégica. E se, eventualmente, foi o 1º Barão e 1º Visconde de Foz Côa quem concretizou a transacção, isto talvez tenha ver com o facto de ele ter o estatuto de chefe do “clã”, herdado de seu pai Luís de Campos Henriques, o “2º.Senhor de Campos”, de Vila Nova de Foz Côa. E a deferente designação “Casa do Campinhos”: não será ela um derivado deste estatuto?
Responda quem souber...
Francisco António de Campos, 1º Barão e 1º Visconde de Vila Nova da Foz Côa, viveu durante mais de 50 anos em Lisboa e aqui faleceu, viúvo, em 1873. E porque não teve filhos, deixou a sua muito avultada fortuna a seus sobrinhos: Dr. José Caetano de Campos e Dr. Joaquim de Campos Henriques, ambos magistrados, chegando a conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça. E tal como este seu tio, mesmo depois de reformados, continuaram a residir na capital e aqui vieram a falecer.
Depois, herdeiros de gerações seguintes acabaram por dividir o grande edifício em partes, para assim poder ser adquirido por várias famílias mosenses que lá residiram e/ou residem, a saber: de António Gaspar, de Joaquim Moutinho e um ramo da família Barandas.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
(1)- Joaquim A. Castelinho, MONOGRAFIA HIRTÓRICA DE MÓS DO DOURO, ps. 114 e 115. Esta infundada informação só apareceu na 3ª e última edição.
(2)- João A. Pinto Ferreira, Antigo Concelho de Freixo de Numão – Memórias Paroquiais do Séc. XVIII, p. 173 .
(3) - J. A. Pinto Ferreira, FREIXO DE NUMÃO - Apontamentos, p.126.
(4)– António A. Rodrigues Trabulo e António Nascimento Sá Coixão, S. PEDRO DE FREIXO – RAÍZES E IDENTIDADE, p. 224.
(5) - Esteves Pereira e Guilherme Rodrigues, PORTUGAL – Dicionário Histórico, Geográfico, Biográfico e Heráldico, Volume I , p.794.
(6) – Idem, idem, idem... Volume VII, páginas 527 e 528.
(7) – Sousa Costa, Páginas de Sangue – Brandões, Marçais & Cª., 1º.volume, p. 200.