4 - UM MOTIM NAS MÓS

José Gomes Quadrado

O que mais contribui para que continue a escrever sobre o passado da nossa povoação reside no anseio de querer recuperar tradições, factos sociais e históricos, quando os presumo perdidos na memória colectiva da nossa gente. Isto aconteceu, por exemplo, com a “Lenda do Cabeço da Negra”, e o mesmo poderá passar-se com o conteúdo deste ou de outros escritos com origem na memorização da criança que viveu nas Mós, nos anos 40 e princípio do anos 50 do século passado. É, portanto, mais uma narrativa que resulta do esforço da vontade sobre a memória, complementado com a investigação documental possível, mormente quando menos que lembranças, só restam reminiscências.
Ao elaborar o “Bosquejo Histórico das Mós”, que me fora “encomendado” pelo nosso Presidente da Junta, vieram-me à ideia seguros indicadores da existência duma amotinação popular que terá acontecido nas Mós, provavelmente em Setembro de 1904, um acontecimento histórico que embora merecedor de relevo, ali não teve cabimento dados os parâmetros que condicionaram aquele trabalho. Agora, como acima prometi, é a memória daquele facto social e histórico que aqui procuro restaurar.
Quem entra na povoação pelo Castelo, através da estrada que vem de Santo Amaro, começa por encontrar os muros seculares do actual cemitério, que são o que resta das paredes da vetusta igreja paroquial, que antes de ser transformada exclusivamente em cemitério, a partir de 1836, era designada “igreja do Apóstolo S. Pedro”. Durante muitos e muitos séculos, foi nela que sucessivas gerações da população concentrada aquietou as almas cristianizadas, e as sedes dos corpos saciavam-nas na “água do Castelo”, oriunda duma nascente situada no ribeiro, muito próxima do casario medieval que se erguia para Norte, uma nascente que viria a ser denominada “Fonte da Nogueira”.
Com o decorrer dos séculos, sucessivas gerações foram deslocando a povoação para jusante, construindo as suas casas nos sítios onde o vale mais se alarga, nas faldas do rosário de montes e de colinas que encaixam o povoado, procurando a protecção contra os ventos dominantes do quadrante de norte. Por outro lado, a velha igreja paroquial teria ficado tão arruinada com os abalos do Terramoto de 1755, que o “Santíssimo Sacramento” passou para a capela da Senhora da Graça. E mesmo depois de reedificada a vetusta igreja, ali continuou, para maior comodidade dos sacerdotes e dos crentes, porque mesmo continuando a ser designada “Capela da Senhora de Graça e do Santíssimo Sacramento”, há muito ficara situada no meio da povoação, e em torno dela se concentrara a população, constituindo o núcleo central das Mós, tal como chegou aos nossos dias.
Simultaneamente com o referido aconchego, as sucessivas gerações de mosenses procuraram também residir nas proximidades doutras nascentes de água, designadamente: da Fonte do Barreiro, da Fonte do Valtrigo e até da nascente do Escorregadoiro. Mesmo insalubres, estas águas tinham diversas serventias: para a limpeza doméstica, para acudir aos incêndios, para regar, para o funcionamento dos lagares e dos alambiques, etc. Mas decorridas centenas e centenas de anos, a da Nogueira continuou a ser a principal fonte que fornecia água corrente aceitavelmente potável às várias gerações de mosenses até ao último quartel do século passado.
Num solo 100% xistoso e por isso muito permeável, esta mãe de água terá desempenhado um papel decisivo na implantação do povoado no Castelo (novo), e mais importante se tornaria com o progressivo crescimento da população residente, apesar de ter ficado cada vez mais distante do núcleo central da povoação. E quanto mais longe ficava, maior era o número de pessoas que ela abastecia: em finais da era medieval não chegavam a ser 50 as pessoas abastecidas(1); no fim da Idade Contemporânea (1894) fornecia água a 590 habitantes e em 1904, dessedentava mais de 600 moradores. Como já referi numa crónica anterior, a falta de alternativas a esta fonte pública, e o progressivo crescimento populacional, fizeram com que a gente das Mós tivesse na falta de água potável (e não só) um dos seus principais padecimentos.(2)
Para que o Cabo D`Aldeia “o deixasse de ser” para dar lugar ao Fundo do Povo, também contribuiu o pendor para avizinhar e depois arrotear os solos mais fundos, mais férteis e regáveis, existentes nas margens do ribeiro, para aí vicejarem as boas hortas e os bons pomares, onde sempre avultaram as melhores couves pencas, a boa laranja das Mós e outra fruta, constituindo inigualáveis regalos, sobretudo para os grandes proprietários, mormente para os não residentes.
Entre estes sobressaía, no início do século XX, o Dr. António Cândido Pires de Vasconcelos. Ele e uma sua irmã eram donos e senhores de muitas das melhores propriedades do termo das Mós, incluindo alguns dos mais fecundos pomares e hortas existentes nas margens do segmento superior do ribeiro. E um deles ficava situado nas proximidades da fonte pública da Nogueira, para o qual eram desviadas as águas sobrantes que corriam a “céu aberto”. Mas em 1904, o “Doutor Pires” (como era conhecido nas Mós) acabou por ir mais longe: pretendeu contestar o direito da povoação à “posse plena” das águas da Fonte, fruição que detinha desde tempos imemoriais, como julgo que deixei perceber. E em que termos procurou ele contestar este inalienável direito da população, ferindo o seu pundonor?
A resposta a esta questão e a dimensão dos atritos então existentes entre este grande proprietário e a Junta da Freguesia das Mós, presidida pelo Abade António Januário Mendes Vasconcelos, não aparecem explicitadas no relatório apresentado pelo vogal António Caetano Barandas, na reunião da Junta, realizada a 3 de Setembro de 1904 (3). O que ressalta neste registo, são palavras de indignação pela tentativa de atropelo ao direito da população, cometido por alguém, cujo nome é omitido.
Mais explícita foi a indignação dos populares que “saíram à rua”, entoando um cantar de revolta, cujos versos e música eu decorei, passados mais de 40 anos, porque os ouvi recordados por mosenses que, então, tinham mais de 50 anos de idade, e cantavam:

Já não há, não há!
Nem a pode haver
(Bis)
Água no Castelo, olaré!
Pró Doutor beber.
(Bis)

Viva a paródia!
Quer sim, quer não;
(Bis)
Vivam os das Mós, olaré!
E “ós” da Estação!
(Bis)

A ameaça de apropriação das águas da Fonte para regar a sua propriedade, que esteve na origem do Motim de 1904, provavelmente não passou dum pretexto do Dr. António Cândido Pires de Vasconcelos para abrir mais uma frente do confronto político que mantinha com autarcas eleitos pelo Partido Regenerador. Este carismático advogado freixiense era “a principal figura Republicana e Maçónica do concelho de Vila Nova de Foz Côa”(4). E como tal mantinha, entre outros, um conflito político “latente” com o Padre António Augusto Russo, pároco de Freixo de Numão e um pertinaz dirigente local do Partido Regenerador. Mas as investidas políticas contra estes e outros militantes regeneradores do concelho talvez se compreendam melhor se tivermos presente a conjuntura política nacional existente em 1904.
Foi um ano que correu muito mal para o governo Regenerador (formado em Fevereiro de 1903), porque o apoio aos deputados dissidentes franquistas alastrava em várias províncias e o entusiasmo dos republicanos crescia cada vez mais. Apoquentado por estes e outros deputados, Híntese Ribeiro, líder do partido e chefe do governo, propôs a dissolução da Câmara de Deputados em 20 de Abril de 1904, e dois meses depois, a 25 de Junho, realizaram-se novas eleições que voltaram a ser ganhas pelo Partido Regenerador. Mas João Franco foi eleito deputado e os republicanos viram crescer enormemente as suas votações, ganhando, até, em 12 freguesias de Lisboa. Mesmo assim, estes e os partidários do dissidente João Franco consideraram que os resultados eleitorais haviam sido viciados de “ todas as formas” com o intuito de iludir as grandes votações de franquistas e republicanos. Devido a tudo isto (e não só) a sanha dos dirigentes e militantes dos dois partidos subiu ao rubro, e o Dr. Pires Vasconcelos não foi uma excepção, como ficou demonstrado.
Para arredar deste poderoso homem a tentação de se apoderar das águas da Fonte da Nogueira, o referido vogal da Junta propôs que elas fossem canalizadas para “o Terreiro da Capela”, distante cerca 450 metros, calculando para a execução das obras um custo próximo dos 450 mil reis, verba demasiadamente elevada, em seu entender, para as posses da povoação, por isso sugeriu ao presidente da Junta a obtenção da necessária autorização para a “transferência da verba orçada de 70 mil reis” destinada à reparação da Fonte do Barreiro, para com ela poderem ter início as obras da referida canalização. A terminar, propôs a nomeação duma comissão destinada a criar condições que propiciassem o empreendimento, acabando por garantir que, uma vez concluídas as obras, a povoação nunca mais padeceria dos “rigores de sede”, porque o integral aproveitamento do “manancial de águas que andava transviado” traria sem dúvida, à povoação “uma perene fonte de descanso e de sossego”.(3) Que enganado estava o esforçado relator António Caetano Barandas!
Numa outra reunião, a Junta, depois de aprovar as propostas acima referidas, deliberou que: ninguém poderia fazer qualquer obra no ribeiro, sem a competente autorização da Junta de Freguesia, sob pena de “se proceder legalmente”; no ponto seguinte, manifesta a intenção de nomear a sugerida comissão com a incumbência acima referida, prometendo conceder-lhe os necessários poderes para desempenhar “cabalmente a missão” que lhe iria ser confiada. No fim da acta, foi declarado o propósito de pedir “a competente autorização” ao Governador do Distrito para possibilitar a transferência dos acima referidos 70 mil reis, para com eles custear os primeiros trabalhos da canalização.
Naquele tempo, a generalidade dos municípios e das juntas só podiam movimentar verbas públicas com autorização do representante do poder central, o Governador Civil do Distrito. Neste caso, o pedido de autorização seguiu em Setembro e no mês seguinte, o Governador do Distrito já era outro porque, entretanto, o governo do Partido Regenerador “caíra”, passando a governar o Partido Progressista, chefiado por José Luciano de Castro.
Por esta e por outras razões, a solicitada transferência nunca viria a efectivar-se, porque os 70 mil reis acabaram por ser aplicados na reparação da Fonte do Barreiro, em 1909. E as águas da Fonte de Nogueira só chegariam ao “Cano” no Largo do Terreiro, em 1912, quando o Dr. António Cândido Pires de Vasconcelos já havia atingido o cume da sua carreira política…
As obras de canalização completaram-se não à custa dos dinheiros públicos, mas graças aos mais de 400 mil reis, generosamente doados pelo Cidadão mosense, o mais benemérito de sempre: ANTÓNIO AUGUSTO DE OLIVEIRA MENDES.
As iniciais ”A.A.O.M.” gravadas na cantaria cimeira do fontanário público e os dizeres da placa que ali se vê, atestam a gratidão de várias gerações de mosenses.


(1) Segundo o “Cadastro da População do Reino” de 1527, (ou seja, cerca de 40 anos depois da era medieval) a povoação era habitada por 52 moradores.

(2) Se algum dos meus pacientes leitores quiser fazer uma (pálida) ideia da dimensão do calvário da gente das Mós com a falta de água, poderá encontrar resposta no meu artigo “Atribulações da Gente das Mós”, publicada em 1968 em “O Fozcoense” e inserto no sítio dasmos.blogspot.com.

(3) Existem cópias das actas relativas a esta e à seguinte reunião da Junta de Freguesia, na”Monografia Histórica de Mós do Douro”, de Joaquim A Castelinho, edição de 1981, p. 195 e seguintes.

(4) A Primeira República no Concelho de Vila Nova de Foz Côa, António N. Sá Coixão e António A. Rodrigues Trabulo, edição C.M. de Foz Côa, 1993, página 70.