5 - O IMPACTO DO “MINÉRIO” NAS MÓS

José Gomes Quadrado
5.1 - A saga dos volframistas

«A 1 de Setembro de 1939, no dia em que teve inicio a terrífica 2ª Grande Guerra, o governo de Salazar emitiu uma declaração proclamando a “neutralidade portuguesa no conflito europeu”. A nossa situação geográfica, o rumo que Hitler acabou por imprimir às suas investidas (para Leste) e algumas afinidades ideológicas, permitiram a Salazar manter a proclamada neutralidade e desenvolver a estratégia que mais convinha à preservação do império colonial e mais favorecia o comércio externo português. Para atingir este objectivo viria a participar, progressivamente, na chamada “Guerra Económica”, sobretudo, a partir de meados de 1941, quando - com a invasão alemã na Rússia – um conjunto de produtos assumiu uma grande importância estratégica, com especial destaque para a exportação dos minérios do volfrâmio, que viria a funcionar como “faca de dois gumes”, já que foi assinando sucessivos acordos: quer com os ingleses, mantendo o País fiel à secular aliança com a Inglaterra; quer com os alemães, não só para manter a estratégia acima referida mas também porque esperava, então, uma vitória (mesmo que parcial) da Alemanha.
Sendo Portugal o maior extractor destes minérios na Europa, mais do que competitividade entre os beligerantes, estabeleceu-se uma agressiva emulação, desenvolvida pelas respectivas representações diplomáticas, através de agentes que agindo com maior ou menor secretismo, deram origem ao desenvolvimento do contrabando e à subida em espiral do preço dos dois minérios. O efeito desta alta na agricultura do Norte e Centro do País foi deixando o governo cada vez mais preocupado, motivo que o levou a regular e a controlar com maior firmeza o mercado, o que implicou o aumento da repressão, não só em relação aos contrabandistas mas também aos que extraíam os minérios sem licença.
Numa conjuntura em que 15 ou 20 gramas de “minério” passaram a render mais do que aquilo que se colhia nas magras courelas ou do que pagavam por um dia de jeira, a maioria dos camponeses das Mós virou volframista, mesmo correndo os riscos provocados por sucessivas surtidas da GNR, porque actuava sem a exigida licença. Para além de residentes, esta opção viria a ser tomada, também, por alguns mosenses ausentes há vários anos, chegando alguns a deixar o “colarinho branco” e tal como outros retornados (mormente do Porto), vieram para integrar parcerias que laboravam, sobretudo, no sítio sugestivamente designado FILÕES.
Este, como outros espaços mineiros, situa-se numa das lombas ondulantes que se erguem até ao termo de Freixo de Numão, parte das quais podem ser observadas do esplendoroso miradouro de Santa Bárbara. Vertentes muitas vezes percorridos por um dos meus informantes privilegiados, o amigo Rui Solteiro, que conhecendo como ninguém os espaços mineralíferos desactivados, ou seja, o que resta de galerias, trincheiras e poços, é de opinião que teriam sido os das Mós quem mais minérios extraiu “de todos os povos do nosso concelho”. Mas os condicionamentos impostos pelo orografia dissuasória, devidos ao volumoso Montargão (e não só) não permitiam que a nossa povoação tivesse acesso às principais estradas do concelho, e esta terá sido a razão suficiente para impedir que as grandes empresas mineiras se estabelecessem no termo das Mós, optando, antes, por se fixarem no de Freixo de Numão. Sendo assim, talvez só possamos afirmar que terá sido nas Mós onde, eventualmente, mais gente se ocupou na extracção de volframite e de scheelite por conta própria, incorporando diversos tipos de parcerias. Esta generalização ter-se-ia ficado a dever (entre outros eventuais factores) à existência no seu termo de duas linhas de água do tipo torrencial, os ribeiros das Mós e o de Valmampaz, praticamente secos durante grande parte do ano, e sobretudo aquele, que sempre foi um autêntico depósito sedimentar detrítico, constituindo uma sucessão de espaços onde a extracção de minérios era fácil. De tal maneira, que duas que duas jovens munidas de um pequeno sacho e de um alguidar de zinco, ganhavam o dia e ânimo, esgravatando areias e cascalhos, provenientes da secular erosão que as enxurradas, desde sempre, provocaram nas referidas e empinadas ladeiras que, longitudinalmente, se estendiam ao longo da margem esquerda do ribeiro, desde Sobradais até às proximidades da povoação. Parcerias como esta optavam pela chamada “forma de exploração à superfície”, esgravatando ou escavando onde melhor lhes parecia, actuando impelidos por palpites, desde que nas proximidades existisse água que propiciasse a lavagem dos minérios.
Para além da recolha proveniente de detritos, devidos ao fenómeno de aluvião, os grupos maiores e mais organizados actuavam em terrenos mineralíferos – mormente no já referido sitio dos “FILÕES” – munidos de ferramentas e equipamento, como: pás, picaretas, ferros pontiagudos, marras, guilhos, etc... Os montões de terra iam sendo despejados no “rolho”, para se proceder à “lavagem do minério”, utilizando enxada rasa “baixa”, de folha quase tão larga como o interior do “rolho”, onde ela funcionava num “vai e vem” para apurar os dois minérios mais pesados do que os restantes componentes dos detritos. Regra geral, a água não abundava, então tornava-se indispensável a proximidade de 2 poços contíguos: um a montante cuja água depois de passar pelo “rolho” entrava no outro, para voltar a ser revertida para o primeiro. Água sempre movimentada com a ajuda de um gravano. Esta tarefa viria a ser exemplarmente demonstrada pela Associação de Cultura e Recreio “As Mós”, no carro alegórico com que galhardamente participou no Desfile Etnográfico da Festa das Amendoeiras em Flor, no ano de 2004.
Os volframistas por conta própria actuavam sem o prévio conhecimento do valor económico de jazigos metalíferos e com um insuficiente conhecimento da arte de abrir galerias que, portanto, eram minadas sem o devido escoramento, dando azo a desmoronamentos, o mais trágico dos quais roubou a vida a dois volframistas dum grupo de mosenses que actuava nos Filões. E além deste desastre, mais um ou outro aconteceram, provocando fracturas, nomeadamente, de pernas.
Os minérios recolhidos em detritos, de pequenas dimensões, eram depois espalhados em pratos e escolhidos a dedo, separando a volframite de uma cor negra e brilhante da scheelite (“o minério branco”) de uma cor branca amarelada e que apesar de serem mais duros, densos e pesados do que os outros detritos, mesmo assim, era necessário retirar-lhes eventuais impurezas, para não se “vender gato por lebre”, como, por vezes, acontecia. Esta tarefa era normalmente desempenhada por mulheres.
As consequências sociais e urbanísticas desta saga serão assunto dum próximo artigo. »

5.2 - Consequências sociais e urbanísticas

Uma das primeiras e mais significativas consequências da “febre do minério” foi o aumento da população residente nas Mós. De 1930 a 1940, a população passara de 757 para 723 habitantes, ou seja, perdera 5,6% dos seus habitantes. Entre 1940 e 1944, o número de residentes terá crescido cerca de 40%, ultrapassando um total de mil habitantes. E digo terá, porque não conheço registo fidedigno deste histórico crescimento populacional, que se ficou a dever menos ao retorno de mosenses que se tornaram volframistas, mas sobretudo à fixação de várias dezenas de famílias oriundas de zonas mais populosas do Alto Douro, como a da Régua, a do Tua, e até uma numerosa família luso-espanhola aqui se fixou! Durante aqueles breves anos, os resultados da extracção e venda do “minério”, mais do que estancar a sangria demográfica, tiveram o condão de inverter o fenómeno migratório das Mós, já que de aldeia propensa a fornecer um número crescente de emigrantes, passou a ser “ponto de chegada” de imigrantes activos.
Tirante um caso ou outro, esta gente não veio à cata do “eldorado”, mas para suprir a falta de assalariados que então grassava na povoação, visto que (como referi na crónica anterior) a partir da altura em que 15 ou 20 gramas de “minério” passaram a render mais do que uma jeira, nenhum “jeireiro” mosense se prontificava a trabalhar por conta de outrem. Os imigrantes vieram então para serem recrutados por pequenas ou médias empresas mineiras e, sobretudo, para trabalharem na construção civil. Os poucos mosenses que se ocupavam nesta actividade funcionavam, quase sempre, como mestres carpinteiros ou pedreiros. E porque a procura era muita, mais do que operários, actuavam como pequenos empreiteiros, opinando e/ou concebendo, sobretudo os mais criativos e engenhosos, a melhor maneira de construir ou reconstruir as numerosas casas novas então erguidas.
Os extraordinários aumento e renovação do parque habitacional da aldeia representam o testemunho mais perene e significativo da repercussão que a extracção e venda da volframite e da cheelite tiveram nas Mós. Entre 1941 e 1943, não havia “loja”, casebre ou pardieiro que não estivesse habitado. E como sempre, os piores instalados eram os imigrantes, mas também havia mosenses a viverem em condições muito precárias: em casas ou casebres, muitas vezes alugados ou cedidos, quase sempre construídos por um só piso, alguns deles com chão lajeado ou mesmo de terra batida!
E foram muitos destes que vieram a promover a construção de residência própria, mormente, nos sítios do Pombal e do Atalho, onde, anteriormente, não existia uma só casa de habitação.
A arquitectura escolhida seguiu, regra geral, as técnicas tradicionais de construção, dando lugar a habitações verdadeiramente rurais e não imitações de casa exóticas como, mais tarde, aqui como em todo o mundo rural português viria a contecer. Foram construídas de acordo com características especificas, perfeitamente integradas na paisagem envolvente, obedecendo às condições geológicas, isto é, utilizando o xisto, o único tipo de pedra existente no termo das Mós.
Uma das alterações mais significativas então introduzidas na construção das novas casas com mais de um piso residiu, sobretudo, nas escadas, que passaram a ser interiores e feitas de madeira; contrastando com as escaleiras exteriores feitas em pedra, que anteriormente prevaleciam, terminando num balcão (maior ou menor) e, por vezes, nos já muito raros alpendres. As casas com alpendre à entrada que já eram poucas, praticamente desapareceram com as inovações “arquitectónicas” trazidas da Europa pelos nossos emigrantes na segunda metade do século XX.
As casas baixas e casebres pertencentes a proprietários residentes, de uma maneira geral, foram demolidos e substituídos por casas de habitação construídas por: um pavimento térreo – servindo de corte (loja) de animais e/ou de arrumos de alfaias, batatas, cebolas, cereais, etc. – e por um ou dois pisos de sobrado para habitação.
Alguns dos imigrantes eram caiadores o que levou a um mais generalizado emprego da cal nas paredes exteriores de algumas das melhores casas então erguidas, mormente as construídas no designado “estilo colonial” e que mais tarde vieram a ser pintadas, como demonstra a casa que ilustra este texto. mesmo assim, a grande maioria das casas apresentavam as paredes de xisto sem reboco.
Comum a quase todas era o telhado de duas águas, com telhas vindas da Touça (salvo erro) e que assentavam numa trave e num ripado de madeira. Eram raras as que tinham janelas de vidro, sendo mais comum as de madeira, e nalguns casos existia, quando muito, um simples postigo, quase sempre com um único batente. É que entre os muitos mosenses que construíram ou reconstruíram as suas próprias habitações, gente havia a quem o dinheiro amealhado apenas permitiu erguer as paredes exteriores, telhar, assombrar e fixar a pedra da lareira, onde se cozinhava e toda a família se aquecia nas noites frias de Inverno. E porque (tal como as demais casas modestas) não tinham chaminés, o fumo da lareira escoava-se pelas telhas, por onde entravam também raios de luz solar. E erguendo o olhar, observava-se melhor a generalizada arquitectura das casas da povoação: maior altura no centro do que dos lados, devido à configuração da cobertura de telha vã.
E porque estas novas assoalhadas eram amplas e pouco mobiladas, tornavam-se propícias à realização de vários bailes aos domingos, levados a cabo por uma juventude residente, numerosa como nunca e amiga de folgar (como sempre) e que graças a tão propícias condições, cantou e dançou como nenhuma outra geração que a precedera. Até ao aparecimento e divulgação das grafonolas, os cantares tradicionais assumiram um papel determinante na realização dos seculares bailes de roda. Depois passou a dançar ao som de músicas revisteiras vindas do Porto e de Lisboa.
Viveram-se quatro anos de uma certa euforia, isto é, com entusiasmo ou sensação de bem-estar. Mas”foi sol de pouca dura”. Acabada a “Guerra Económica”, sucedeu-lhe o ano hidrológico (Outubro de 1944 a Setembro de 1945) mais seco do século XX. E a partir de então, as condições de vida agravaram-se de tal modo, que apesar do aparecimento de ingressos nas obras de construção do troço da Estrada Nacional N.º 324, entre Murça e a Estação de Freixo, a população residente passou a decrescer tão progressivamente, que chegou aos 714 habitantes registados em 1950!
Esmiuçado o que duma maneira geral já era sabido, resta dizer que não parece lícito que alguém “letrado” tenha publicamente omitido a existência de vestígios do impacto que a extracção dos minérios do volfrâmio deixou nas Mós.