Foi em Setembro de 1979!
Aquela era mais uma das viagens que, desde menino, me permitiam passar férias em Setembro: primeiro, nas Mós; (uma vez) no Pocinho; mais tarde em Mogadouro e em Lagoaça. Viajar de comboio sempre foi para mim quase uma obsessão (certamente por ser filho do primeiro maquinista nascido nas Mós). Com efeito, fora sempre nele que invariavelmente viajava no mês de Setembro do Porto ou de Lisboa para os destinos acima referidos. Mas nunca (em mais de quarenta anos) como naquele Setembro me sentira não só desiludido mas também amargurado com a maneira como nos obrigaram a viajar.
Embarcáramos em Campanhã cerca das 10 horas, no comboio que, então, terminava a sua marcha na estação de Barca D`Alva.
Nós desembarcámos no Pocinho pois, daquela vez, o nosso destino era Lagoaça. E as nossas agruras começaram no transbordo. Com efeito, quando chegámos à plataforma da linha de Vale do Sabor, deparámos com o lastimável espectáculo protagonizado por passageiros: homens, mulheres e crianças iam de roldão, atropelando este mundo e o outro, na ânsia de apanhar um lugar menos mau numa das duas acanhadas carruagens que, com dois vagões e uma automotora, formavam a composição mais obsoleta e inconcebível que jamais os meus olhos viram!
Não querendo sujeitar a minha mulher e a minha filha aqueles atropelos, procurei no meio da confusão o chefe da estação, para que ele me explicasse a razão de ser de algo que me parecia mais absurdo, e perguntei-lhe: -Se esta composição leva aquela automotora a reboque, por que diabo proíbem a entrada nela, se a gentiaga nas carruagens vai ali capaz de se matar?!
A esta observação, o chefe da estação, laconicamente, respondeu: -- São ordens, amigo, são ordens…
Não lhe perguntei mais nada. Agarrámos a bagagem e rompemos para o meio da confusão a disputar um lugar no varandim duma das quase repletas carruagens, sem mais tugir nem mugir – que a protestarmos por tudo o que ali víamos mal feito, punha-se a gente maluca!
O carroção partiu, seguindo na sua marcha ronceira, a subir a encosta íngreme, a caminho de Moncorvo. Ao chegar à caseta da Gricha, observando as declivosas ladeiras, lembrei-me da peripécia, repetidamente contada pelo tio Costa, ocorrida por estes sítios, quarenta e tal anos antes. Também agora, garanto-lhe, teria tempo de recuperar o chapéu no amendoal e voltar a apanhar o comboio sem ter de se esfalfar muito.
A paisagem que se desfruta lá do alto é um deslumbramento!
Lá ao longe, o Douro a serpentear nos meandros provocados pelo Monte-Meão, tendo por pano de fundo as alturas da serra da Lousa; mais próximo de nós, as ubérrimas e verdejantes terras da Vilariça, regadas pelo Sabor que me parecia o mais sereno e fecundo dos rios. Mais adiante, na terra avermelhada que ladeavam a via, avultavam soutos, pinhais e outro arvoredo, com muitas árvores carbonizadas por arcaicas locomotivas que vomitavam fogo.
O comboio chegou à estação de Freixo de Espada à Cinta e não havia meio de arrancar. Ouviram-se assobios, gerara-se um burburinho e ergueram-se duas vozes a vociferarem contra as liberdades que nos trouxera o 25 de Abril, repetindo a demagogia que tinham começado no Pocinho. E enquanto lá à frente o maquinista e o chefe de estação continuvam a discutir qual dos dois tinha a obrigação de desengatar os dois vagões, um rapaz, com ar de quem trabalha no duro, foi dizendo: - Isto anda assim por via dum inspector minhoto que, dizem, só descansará quando fechar esta linha…
Intrometendo-me na conversa, disse-lhe: - Ó amigo, nenhum inspector (minhoto ou não) tem poderes para fechar esta ou outra linha… São antes uns passarões que estão em Lisboa que alimentam esse propósito…
Por fim, os dois ferroviários acabaram por repartir entre si as tarefas dum agulheiro, permitindo que a malfadada composição prosseguisse a sua marcha com mais de uma hora de atraso.
Chegados à estação de Lagoaça, depois de beijos e abraços, lamentámos que os familiares que nos esperavam estivessem até às três e meia da tarde sem almoçar. Os mais jovens manifestavam a sua indignação pela decadência a que tinha chegado a linha do Sabor, enquanto os mais idosos, encolhendo os ombros, limitaram-se a dizer: - Isto está assim e não é só no comboio…E o que poderemos nós fazer?
Efectivamente era assim. Aqui desfiavam-se em cada dia rosários de amarguras, com as horas de atraso não só dos comboios, mas também a camionagem que por ali fazia das suas, na mais completa impunidade. Disto mesmo tivemos provas quando, dois dias depois da nossa chegada, um de nós precisou de ir a Mogadouro, que dista cerca de 25 km. Para se fazer transportar, aguardou a “carreira” que depois do transbordo com o comboio, partira da Barca d’Alva para chegar a Lagoaça já com 45 minutos de atraso, a caminho de Bragança. Depois de ter percorrido cerca de 15 kms, o autocarro deteve-se junto à aldeia de Castelo Branco, estacionando à torreira do sol durante cerca de uma hora!
Bem protestaram os passageiros contra a demora e o local do estacionamento, mas o motorista, fazendo “ouvidos de mercador”, só viria a reiniciar a marcha depois que tomou lugar uma pequena e excêntrica banda de música que, bem comida e bem bebida, passou o resto do percurso a abafar os protestos dos outros passageiros com desabridas gaitadas.
No fim de contas, a pobre gente que se deslocava à vila por ter consultas marcadas ou afazeres junto das repartições oficiais, viu o seu dia estragado porque a “carreira” chegou com duas horas de atraso.
Dias depois, tive o ensejo de entrar numa conversa com um conjunto de jovens que manifestavam a sua indignação com a situação em que se encontrava a circulação dos comboios no ramal do Vale Sabor. E a terminar a conversa estabelecemos os seguintes compromissos: Eu escreveria para jornais nacionais a relatar os acontecimentos e eles, quando saísse o meu artigo, tocariam os sinos a rebate, juntando pessoas que manifestariam o seu desagrado na berma da estrada nacional (que se estende paralelamente a linha-férrea) e na estação; à passagem das poucas composições que ali paravam.
Como sempre acontecia quando estava de férias na região, não perdi a oportunidade de ir “em peregrinação” às Mós e não só, pois, naquele ano, àquela visita adicionei uma curta estadia em Foz Côa para rever um primo e amigo que ali residia. E porque queria obter mais assuntos dignos de reportagem, resolvi voltar a utilizar os pouco prestimosos serviços da CP, sujeitando-me a sofrer os reveses adiante relatados.
A “gaiola” de ferro que por ali toma o nome de automotora, já chegou a Lagoaça com pessoas a viajarem de pé. Comigo entraram mais nove passageiros, incluindo uma jovem que ia doente e febril. E como as incomodidades eram muitas e não suportariam mais aumentos, improvisou-se uma espécie de “corpo de salvação”, constituído por ferroviários que seguiam como passageiros, tendo por missão ajudar o revisor e o maquinista a conter as pessoas que, nas paragens seguintes, se apresentassem como candidatas a passageiros. Só que de pouco valiam os seus esforços: uns entravam devido ao peso dos seus argumentos; outros porque empregavam todo o seu vigor físico na defesa do direito de viajar numa empresa pública. E com excepção de uns que ficaram em Carviçais (salvo erro), todos os demais vieram aumentar o martírio duma viagem que parecia interminável. Quando aquela geringonça partiu de Moncorvo, ia quase tanta gente de pé como sentada!
Depois das referidas visitas que me levaram às Mós e a Foz Côa, a viagem de regresso a Lagoaça teve lugar num dia que sempre recordarei: 17 de Setembro de 1979.
Meu primo, com o seu automóvel, acompanhara-me em toda a minha digressão, incluindo o favor de me levar de Foz Côa à estação do Pocinho. Quando, passada uma curva da estrada, avistámos a linha estreita do ramal de Vale do Sabor, verificámos que procediam a manobras conducentes à formação dum comboio com pelo menos duas carruagens com destino a Duas Igrejas. Minutos depois, deixámos o carro estacionado junto à porta de entrada da estação e eu, de imediato, dirigi-me à bilheteira e aguardei durante largos minutos que me viessem vender o indispensável bilhete. Como não aparecia ninguém, dirigi-me para as plataformas da estação a fim de averiguar o que se passava. Apesar das más experiências vividas anteriormente, mal imaginava eu que o pior estava ainda para acontecer!
O comboio que nós víramos em formação fora anulado, para ser substituído pela geringonça atrás referida. E ainda não tinha fechado a boca de espanto, quando me apercebi que chegara à porta da estação um autocarro duma empresa de camionagem que naquela zona era concorrente da CP. E mais boquiaberto fiquei quando vi os passageiros procedentes do comboio da linha do Douro a serem distribuídos pelo autocarro e pela “automotora”.
Pela boca deste e daquele fiquei a saber o que se passava: os passageiros com destino às estações até Fornos-Sabor embarcavam no autocarro; os que seguiam daí para cima tomavam lugar na geringonça da CP.
Só que a divisão dava resto: dois jovens cujo destino era Mogadouro, entraram na automotora e o chefe da estação queria expulsá-los porque, alegava, excediam a lotação!
Eu, que nas vésperas, tinha viajado naquela mesma geringonça com cerca de 20 passageiros além da lotação, não podia levar a sério tantos escrúpulos por apenas dois!
Mas os motivos de estupefacção sucediam-se em catadupas:
Se a CP não se obrigava a fazer desdobramentos quando havia falta de lugares, poderia ela mesmo provocá-la, anulando o comboio e deixando passageiros em terra?
Se, como diziam, era à concorrência da camionagem que se devia, em grande parte, o progressivo défice da CP, seria coerente que tivessem mandado anular aquele comboio para obrigarem os passageiros a viajarem no autocarro duma empresa concorrente? Colaborando, como vimos, com as empresas privadas de camionagem e tratando os passageiros como tratavam, não seria tudo feito de caso pensado?
Para encontrar resposta para estas questões, corria eu atrás do chefe da estação, que andava numa fona, da automotora para o telefone, do telefone para a geringonça…
Verificando que ele “andava de cabeça perdida”, limitei-me a perguntar-lhe quais eram razões que o tinham levado a suprimir o comboio que minutos antes fora alinhado. Ele sempre apressado, respondeu:
- Anulei o comboio porque recebi ordens para o anular…Eu aqui cumpro ordens e só daqui a cinco horas haverá outra automotora, mas não lhe garanto que tenha lugar nela. E se quer saber quem deu as ordens, vá à zona Norte…
Foi tudo quanto consegui saber da boca do conspícuo chefe de estação.
Quando eu conversava com meu primo e outros indignados, vimos chegar à plataforma uma patrulha da GNR de V.N. de Foz Côa que, requisitada pelo chefe de estação, se apresentou ali composta por cinco elementos, armada de pistolas metralhadoras e comandada por um cabo que, com cara de poucos amigos, de imediato ordenou que se desse início às “razões” da sua presença: expulsar os dois atrás referidos rapazes de Mogadouro que cometiam o grave delito de exceder a lotação da geringonça!
Temendo que agredissem ou prendessem os dois jovens, entrepus-me, identificando-me e afirmando-me como parte interessada naquele diferendo, pois também estava a ser vítimas das medidas arbitrárias praticadas pela CP.
Sem me dar ouvidos, virou-se para o chefe da estação, perguntando-lhe o que tinha intenção de fazer. Este perante o clamor dos circunstantes, acabou por obrigar a pagar 113$00 em vez dos 75$00 do custo do bilhete. E os dois moços, intimidados, aceitaram as condições exigidas e seguiram viagem com prejuízo de dois ferroviários que foram postos no olho da rua. Mas este incidente não terminaria sem mais um lamentável episódio: o chefe da estação, manifestando instintos de vingança, sabendo que um dos jovens tinha passe, por ser filho dum ferroviário, obrigou-o a mostrar o respectivo cartão para participar do pai… Ali deixou um exemplar gesto de má camaradagem!
Indignado, virei-me para o cabo e perguntei-lhe: - E então nós, Sr. Comandante, os que entrámos aqui na estação do Pocinho, não teremos razão de queixa?
- Queixem-se à Administração da CP. – Foi a resposta dele.
- E ela pode ser juíza de causa própria? Não poderemos queixarmo-nos dela aos tribunais?
- Isso é lá consigo…
- Mas não poderá o senhor recolher o nome de duas testemunhas para apresentarmos essa queixa?
-Não! A nossa missão terminou e você, se não está bem, queixe-se à Administração da CP, já disse!
E assim encerrou mais este caso o digníssimo comandante da patrulha da GNR de V.N. de Foz Côa. E eu, se não fosse a generosidade do meu primo e amigo, levando-me no seu carro até Lagoaça, certamente ficaria mais cinco horas na estação do Pocinho a ver a miséria que por lá ia. Mas o mais certo seria “puxar pelos cordões à bolsa” e alugar um carro que me levasse àquele destino.
No dia seguinte, quando nos preparávamos para regressar a Lisboa, mas já sem a pouco prestimosa colaboração da CP, ouvimos dizer que desde aquela manhã tocavam os sinos a rebate em Carviçais e que o povo se preparava para obstruir a passagem dos autocarros que começavam, progressivamente, a substituir os serviços da CP.
Duas semanas depois de termos chegado a Lisboa, enviaram-nos de Lagoaça um despacho referente a 140 kgs de batatas, pagando 349$00 para nos serem entregues ao domicílio. Mas desta feita, em vez dos 15 dias ou mais como de costume, as batatas chegaram seis dias depois e, como ninguém as esperava em casa, elas voltaram aos armazéns de Santa Apolónia. Lido o aviso, telefonámos a pedir que no-las entregassem, o que só fizeram mediante o pagamento adicional de 150$00!
As interrogações que acima deixei em suspenso, haveriam de encontrar resposta quando acabaram por fechar definitivamente a linha de Vale do Sabor (e não só), alegando que a sua inutilização se ficara a dever à falta de afluência de passageiros…
O que terão pensado as populações residentes quando, algum tempo depois, viram as estações vandalizadas, alguns carris roubados, e a circulação de pessoas e mercadorias condicionada aos interesses das empresas privadas de camionagem?
Dos muitos que sofreram algumas das agruras aqui relatadas, quantos deles terão presente que as peripécias ocorridas naquele Setembro de 1979 indiciavam o princípio do fim dos comboios na nossa região?
Enviado para publicação no “COAVISÃO” em 30 de Março de 2011
José Gomes Quadrado